Trabalho em condições análogas à de escravo – violação de direitos humanos

AutorTânia Mara Guimarães Pena
1 – Trabalho forçado X trabalho escravo X trabalho em condições análogas à de escravo

Decorridos 121 da abolição oficial2 da escravidão no Brasil, as manchetes dos jornais denunciam a existência de “trabalho escravo”, rural e urbano, em vários estados da federação. As primeiras denúncias tiveram início na década de 70, pelo defensor de direitos humanos na Amazônia, Dom Pedro Casaldáliga. Daí em diante, diversos órgãos, estatais e não estatais, de tempos em tempos aparecem na mídia com relatos chocantes sobre o tratamento dispensado aos trabalhadores, por alguns tomadores de serviço, pelo Brasil afora.

No início dos anos 90 o Brasil tornou-se uma das primeiras nações do mundo a admitir, perante a comunidade internacional, a existência de “trabalho escravo” em seu território.

A expressão “trabalho escravo” é utilizada pela imprensa em geral e considerada de fácil apreensão pela população, que identifica com o clássico conceito de escravidão as precárias condições de trabalho, a miséria, o cerceamento da liberdade individual e a ausência de direitos laborais impostos aos trabalhadores. Contudo, conforme se verá, a expressão não encontra ressonância em nosso ordenamento jurídico.

Diversos tratados e convenções internacionais3 versam sobre trabalho forçado e/ou escravidão4. O Tratado de Roma (que criou o Tribunal Penal Internacional), datado de 1988, cuidou de conceituar escravidão (art. 7º), nos seguintes termos:

Por “escravidão” entende-se o exercício de alguns ou de todos os atributos do direito de propriedade sobre um indivíduo, incluindo o exercício desses atributos no tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças.

Segundo o art. 1.228 do Código Civil Brasileiro, os atributos do direito de propriedade compreendem o direito de usar, gozar e dispor da coisa e de reavê-la de quem injustamente a possua ou a detenha.

Vê-se, com clareza, que os atributos do direito de propriedade5, no Brasil, somente recaem sobre coisas, e não sobre pessoas. Juridicamente, portanto, não existe escravidão6 no Brasil.

Excluída a possibilidade de se conceituar o objeto do nosso estudo como “trabalho escravo”, qual deve a terminologia adotada? Trabalho forçado, escravidão branca, superexploração do trabalho, trabalho degradante, trabalho em condições análogas a de escravo são algumas das expressões utilizadas, muitas vezes como se sinônimas fossem.

No plano internacional a expressão referendada pela OIT é “trabalho forçado”, conforme se infere das duas convenções que regulam o tema: Convenção 29 (promulgada no Brasil pelo Decreto 41.721, de 25/06/57), sobre o trabalho forçado ou obrigatório e Convenção 105 (promulgada no Brasil pelo Decreto 58.822, de 14/07/66), relativa à abolição do trabalho forçado.

Estabelece o art. 2º, item 1 da Convenção 29 da OIT:

Para fins desta Convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

O item 2, do mesmo artigo 2º, preconiza que as situações listadas não devem ser consideradas trabalho forçado ou obrigatório:

A expressão “trabalho forçado ou obrigatório” não compreenderá, entretanto, para os fins desta Convenção:

  1. qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude de leis do serviço militar obrigatório com referência a trabalhos de natureza puramente militar;

  2. qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas comuns de cidadãos de um país soberano;

  3. qualquer trabalho ou serviço exigido de uma pessoa em decorrência de condenação judiciária, contanto que o mesmo trabalho ou serviço seja executado sob fiscalização e o controle de uma autoridade pública e que a pessoa não seja contratada por particulares, por empresas ou associações, ou posta à sua disposição;

  4. qualquer trabalho ou serviço exigido em situações de emergência, ou seja, em caso de guerra ou de calamidade ou de ameaça de calamidade, como incêndio, inundação, fome, tremor de terra, doenças epidêmicas ou epizoóticas, invasões de animais, insetos ou de pragas vegetais, e em qualquer circunstância, em geral, que ponha em risco a vida ou o bem-estar de toda ou parte da população;

  5. pequenos serviços comunitários que, por serem executados por membros da comunidade, no seu interesse direto, podem ser, por isso, considerados como obrigações cívicas comuns de seus membros, desde que esses membros ou seus representantes diretos tenham o direito de ser consultados com referencia à necessidade desses serviços.

    Por seu turno, a Convenção 105 da OIT, no seu art. 1º estabelece:

    Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso:

  6. como medida de coerção ou de educação política ou como punição por ter ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente;

  7. como método de mobilização e de utilização da mão de obra para fins de desenvolvimento econômico;

  8. como meio de disciplinar a mão de obra;

  9. como punição por participação em greves;

  10. como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.

    Entende a OIT que “trabalho forçado é expressão jurídica, mas também um fenômeno econômico” e “embora possam variar em suas manifestações, as diversas modalidades de trabalho forçado têm sempre em comum as duas seguintes características: o recurso à coação e a negação da liberdade”.7

    Segundo o relatório Não ao Trabalho Forçado, de 2001, da OIT, “embora a noção jurídica seja constante, o contexto do trabalho forçado ou compulsório evolui com o tempo”. Na década de 20 a principal preocupação era evitar o uso de trabalho forçado ou compulsório às populações indígenas durante a fase colonial; na década de 50, segundo momento de produção normativa, a preocupação residia na “imposição de trabalho forçado para fins políticos”; nas décadas de 50, 60 e 70, período da Guerra Fria, o foco foram as “leis de vadiagem, que implicavam a obrigação de trabalhar, nos países do bloco comunista e em alguns estados recém-independentes, principalmente na África”; nas décadas de 80 e 90 “houve um aumento no grau de conscientização das questões de gênero”, evidenciando as situações de submissão das mulheres ao trabalho forçado doméstico e à exploração sexual, assim como a obrigação do trabalho penitenciário aos homens.

    Por ocasião da conceituação de escravidão pela Convenção sobre a Escravatura (1926, Liga das Nações), ficou excepcionada no seu art. 5º a possibilidade de manutenção de trabalho forçado para fins públicos, desde que atendidas determinadas condições. A Convenção deixou clara a distinção conceitual entre escravidão e trabalho forçado, admitindo este, desde que o trabalhador não fosse considerado propriedade do tomador dos serviços. Passou a se entender que a escravidão está atrelada ao direito de propriedade e que o trabalho forçado tem como pressupostos a ameaça de sanção e ausência de liberdade. Neste sentir, a Convenção 29 da OIT categorizou de forma distinta “trabalho escravo” e “trabalho forçado”, tendo considerado a primeira como espécie do último.

    No Brasil, o legislador penal (art. 149 do Código Penal) transformou em espécie (trabalho forçado), o conceito adotado pela OIT como gênero8.” Veja-se a redação do art. 149, após a alteração ditada pela Lei n. 10.803/03:

    Art. 149. Reduzir alguém condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

    Verifica-se pelo tipo legal que também pela ótica do dogmatismo penal é impossível referendar a expressão “trabalho escravo”. Assim, e embora sabedora de que a expressão “trabalho escravo” é a consagrada pelo uso e dotada de grande simbolismo, opto por utilizar ao longo do trabalho, quando for me referir às situações enquadradas no art. 149 do Código Penal, pela expressão “trabalho em condições análogas à de escravo9”.

2 – Explicações para a existência de trabalho em condições análogas a de escravo

Em excelente artigo intitulado Deliquência patronal, repressão e reparação10, Wilson Ramos Filho analisa as justificativas normalmente utilizadas pelas pessoas para tentar explicar a existência de trabalho em condições análogas à de escravo. Neste tópico, em breve síntese, analiso cada uma delas.

Segundo o autor, parte das explicações responsabiliza o Estado pela ocorrência do fenômeno, em virtude da “ausência de fiscalização/repressão por parte de seus agentes (DRTs, Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho e outros) incumbidos constitucionalmente de velar pelas relações de trabalho dignas, seja no campo, seja nas cidades”11. Tais explicações proviriam de “pólos ideológicos potencialmente antagônicos”: um deles, de corte liberal ou neoliberal, acaba por tornar invisível a figura do infrator legal (empregador que submete os empregados a tais condições de trabalho) por detrás da crítica estadofóbica12; outro, que se apresenta como vertente “crítica” ou “progressista”,

na ânsia de reivindicar “mais Estado” (mais fiscalização, mais intervenção, mais aparelhamento dos órgãos) também acaba tornando invisíveis os verdadeiros agentes, praticantes do crime, ao focar sua análise na “falta de...

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