Pactos e Convenções Internacionais e ordenamento jurídico pátrio

AutorBernardo Montalvão Varjão de Azevedo
CargoMestrando em Direito Público na linha de Limites à Validade do Discurso Jurídico junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia
1. Introdução

Com o avanço da globalização e das ideologias calcadas em interesses econômicofinanceiros, tendentes a expansão agressiva por novos mercados consumidores, o Direito moderno se vê diante da contingência de se adaptar a esses fatores reais de poder1, rompendo, por conta desses mesmos fatores, não só com vetustos institutos jurídicos, mas também impondo uma modificação na interpretação de outros tantos (serve de exemplo, a revisão do conceito de soberania por parte dos países participantes dos grandes mercados comuns). Além disso, tais agentes meta-jurídicos acabam por criar novos conceitos e figuras jurídicas (tome-se como exemplo, a criação de um Tribunal Europeu para julgamento de algumas espécies de crimes, como é o caso dos crimes de guerra), desempenhando, assim, um verdadeiro papel de força propulsora do Direito.

É dentro deste contexto mundial que o Brasil, hoje já participante do MERCOSUL (bloco econômico, na atualidade, em franca decadência) e assediado por outros grandes conglomerados comerciais (Mercado Comum Europeu e o NAFTA, havendo, por parte deste último, uma grande pressão internacional para forma a ALCA - Área Livre de Comércio entre as Américas), vê-se compelido a participar (ou, pelo menos, a sofrer as conseqüências de sua omissão) das grandes decisões mundiais, participando, por esse mesmo motivo, cada vez mais, da realização e assinatura (por parte do Chefe do Poder Executivo - CF, art. 84, VIII) de novos tratados e convenções, bem como assumindo, na mesma proporção, o compromisso de ratificar os mesmos (CF, art. 49, I), para que possam adquirir, assim, força coercitiva dentro do ordenamento jurídico brasileiro e, ao mesmo tempo, demonstrar ao mundo, com tal comportamento, a seriedade com que é tratada a matéria pelo país.

Foi tendo em conta esta nova moldura das relações mundiais que o legislador constituinte de 1988 salientou, de maneira expressa, a questão relativa ao ingresso no ordenamento jurídico pátrio dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, dedicando, dada a relevância da matéria, artigo específico (CF, art. 5º, § 2º) ao tema, o qual encontra-se, desta forma, positivado: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (grifo nosso).

Pois bem, diante desta situação, cabem aos estudiosos e operadores do direito, não só analisar todas as conseqüências que essa série de acontecimentos irão ocasionar em nosso ordenamento, mas também observar criteriosamente as interferências que irão gerar em torno dos direitos e garantias expressos na Constituição Federal, assunto que dada a sua relevância e conteúdo marcadamente liberal diz respeito, mais diretamente, aos ramos dos direitos penal e processual penal (servem de exemplo o Pacto de San José de Costa Rica e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos) e que demanda, por parte do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, caput), uma atuação diligente, tendo em vista a natureza eminentemente constitucional que rodeia o tema (como, por exemplo, a natureza jurídica das normas de gênese alienígena e a maneira como a Constituição disciplina a sua entrada em nosso ordenamento).

Contudo, ao se proceder a tal análise, deve-se ter em conta que estes dois últimos institutos, quais sejam, os direitos e garantias, não são expressões sinônimas, sendo necessário, portanto, estabelecer as suas distinções, para que, destarte, possa se ter a real noção da interferência destes tratados internacionais nos direitos e garantias contemplados em nosso ordenamento jurídico. Passemos, então, a esta diferenciação.

2. Direitos e garantias e sua distinção

Tomado em seu significado autônomo e quase que desvinculado de toda acepção política, o termo garantia tem por escopo estabelecer uma posição que assevera a segurança e põe cobro à incerteza e à fragilidade. Vale dizer, existe a garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar.

Entrementes, surgem as primeiras dificuldades em precisar o significado deste termo quando ele é transladado para a esfera política e jurídica, possuindo, a partir de então, um sentido não técnico, uma dimensão conceitual, de cunho axiológico, por estar vinculado aos valores da liberdade e da personalidade como instrumento de sua proteção.

A garantia, vista como um meio de defesa, coloca-se, então, diante do direito, mas com este não se deve confundir. Esse equívoco de tratar de forma semelhante os direitos e garantias, de utilizar as duas expressões como se fossem sinônimas, tem sido reprovado pela doutrina mais abalizada2, a qual separa, com a devida precisão, os dois institutos.

Com efeito, este engano ocorre sempre que a garantia é colocada numa acepção em conexidade direta com o instrumento de organização do Estado que é a Constituição. Além disso, se admitida fosse essa confusão, nunca se lograria um conceito exato e útil do que seja, realmente, uma garantia constitucional. Ademais, uma vez adotado este caminho ideológico, cair-se-ia no obscurecimento de uma das noções mais importantes para a compreensão da progressão valorativa do Estado Liberal para o Estado Social, ou seja, acabar-se-ia por ignorar um dos pontos mais relevantes da história da evolução das garantias fundamentais nas Constituições.

Convém ressaltar, desde já, que existem dois pontos ao redor dos quais giram as garantias, as declarações e os direitos desde a sua origem mais remota, quais sejam, o indivíduo e a liberdade. No decorrer do século XX, um terceiro ponto foi acrescentado: a instituição. E diga-se, desde logo, que o advento deste terceiro ponto marca, com cores definitivas, uma ruptura da linha clássica e tradicional no entendimento das garantias, que antes eram entendidas apenas como garantias individuais.

Tendo em vista a proximidade dos direitos com as garantias e considerando a finalidade destas, que é tornar eficaz a liberdade tutelada pelos poderes públicos e destacadas nas conhecidas declarações direitos, a doutrina latino-americana tem procurado estabelecer um critério de distinção entre ambos os institutos, sabendo-se, contudo, que, feita uma rigorosa observância do mesmo, a preservação de tal critério distintivo se faz de todo inexeqüível, pois casos raros e excepcionais sempre iram existir.

Para Carlos Sánchez Viamonte3, a expressão garantia abrange apenas "a proteção prática da liberdade levada ao máximo de sua eficácia". E nesta esteira do raciocínio, o mesmo autor, em outra obra, sustentando a distinção entre garantia e direito, estabelece que "garantia é a instituição criada em favor do indivíduo, para que, armado com ela, possa ter ao seu alcance imediato o meio de fazer efetivo qualquer dos direitos individuais que constituem em conjunto a liberdade civil e política" 4.

Outro estudioso argentino, Rafael Bielsa, citado por Paulo Bonavides, também preocupado em estabelecer uma nítida distinção entre os dois institutos sobre comento, pontua que "as garantias são normas positivas, e, portanto, expressas na Constituição ou nas leis, que asseguram e protegem um determinado direito" 5.

Considerando a latitude do presente instituto, Bielsa afirma que "a garantia pode referir-se a um direito em sentido subjetivo, em defesa do interesse individual, ou a um direito em sentido objetivo, em defesa do interesse coletivo" 6.

Releva notar, ainda, que, nesse passo, grande também foi à contribuição de Juan Carlos Rébora, também citado por Paulo Bonavides, o qual consigna que "as garantias funcionam em caso de desconhecimento ou violação do direito e que o fracasso das garantias não significa a inexistência do direito; suspensão de garantias não pode significar supressão de direitos" 7.

Não é demais, ainda, lembrar a lição de Rui Barbosa acerca da matéria, o qual assim pondera: "a confusão, que irrefletidamente se faz muitas vezes entre direitos e garantias, desvia-se sensivelmente do rigor científico, que deve presidir à interpretação dos textos, e adultera o sentido natural das palavras. Direito é a faculdade reconhecida, natural, ou legal, de praticar ou não praticar certos atos, ao passo que a garantia ou segurança de um direito, é o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados de ocorrências mais ou menos fácil" 8.

Todavia, o mais recente contraste entre os direitos e garantias é lembrado pelo constitucionalista português Jorge Miranda, o qual a respeito do tema escreve: "Clássica e bem atual é a contraposição dos direitos fundamentais, pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos propriamente ditos ou direito e liberdades, por um lado, e garantias, por outro lado". "Os direitos representam por si só certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjetivas (ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se direta e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias, as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se" 9.

Entretanto, ao tratar do direito de liberdade, exemplo maior de conquista do Estado

Liberal, Jorge Miranda tece uma discriminação ainda mais contundente e clara, a saber:

"- As liberdades assentam na pessoa, independentemente do Estado; as garantias reportam-se ao Estado em atividade de relação com a pessoa; - as liberdades...

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