Direito à intimidade do empregado e câmeras de televisão

AutorManoel Jorge e Silva Neto
CargoProcurador do Ministério Público do Trabalho
1. Introdução

Os efeitos da globalização se fazem sentir nos mais diversos domínios da vida em sociedade.

Não é, todavia, com convicção, fenômeno cercado de qualquer novidade, simplesmente porque a história da civilização oferta exemplos de tentativa de consolidar uma "aldeia global" : o Império Romano tentou expandir-se por toda a terra; Portugal e Espanha, na época das descobertas, buscaram, de modo semelhante, aumentar as suas possessões territoriais, culminando com a divisão do globo em duas partes iguais no Tratado de Tordesilhas; a Revolução Industrial imprimiu a marca da expansão do capitalismo em busca dos mercados consumidores; e, masi recentemente, com a Queda do Muro de Berlim, promoveu-se a abertura econômica e política dos países antes pertencentes à denominada "Cortina de Ferro". Estamos, portanto, diante da quarta "onda" globalizadora, com o que - repita-se - a ocorrência não deve rigorosamente ser considerada fato novo.

Sendo termo que designa o fim das economias nacionais e a integração cada vez maior dos mercados, dos meios de comunicação ( revolução tecnológica ) e dos transportes, a globalização da economia, conseqüentemente, põe sob evidência apenas um traço desta realidade.

Mas aquilo que hoje se chama de global sourcing - o abastecimento de uma empresa por meio de fornecedores que se encontram em diversas partes do mundo - provoca acirramento incontrolável da competitividade, instalando um autêntico estado de autodefesa no contexto das relações econômicas internacionais. Sim, porque se o objetivo é, de forma ensandecida, conquistar consumidores, o preço do produto deve se situar no patamar mínimo - o que é bastante lógico e aceitável em termos de conduta empresarial. É estranho, entretanto, que governos e empresas lancem mão do dumping social, do insidioso afastamento das normas protetivas dos trabalhadores para viabilizar o acesso aos mercados.

E quando a globalização pende para o desenvolvimento da tecnologia, impõe-se examinar o resultado das inovações no altiplano do direito do trabalho. E, no particular, nota-se, a cada dia e de forma mais crescente, a utilização de parafernália eletrônica pelos empregadores para controlar a produtividade ou mesmo o comportamento dos seus empregados, além de lançar mão do expediente para proteger os bens da empresa.

Propomo-nos a, no presente trabalho, examinar a instalação de câmeras nas empresas tomando por parâmetro o art. 5º, X, da Constituição, que promove a tutela do direito individual à intimidade.

De sorte a alcançar-se o fim pretendido, relataremos um caso concreto de instalação de câmeras de televisão ensejadora de iniciativa do Ministério Público do Trabalho; será ressaltado o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e sua relevância para a solução do problema; examinaremos o tema buscando a distinção entre o direito à intimidade e à vida privada, habitualmente objeto de confusão; haverá referência ao princípio da proporcionalidade e de que forma o postulado se reveste de utilidade para solucionar os inúmeros casos concretos de instalação de câmeras nas empresas e possível ofensa à intimidade dos trabalhadores; mencionaremos duas situações de condutas empresariais lícitas e ilícitas ; e, por fim, será indicada a tutela constitucional do meio ambiente do trabalho e sua pertinência ao assunto proposto.

2. Relato de caso

Em matéria de grande repercussão publicada no Jornal "A TARDE", de Salvador/BA, edição de 28 de maio de 2003, noticiou-se que instituições de ensino superior tinham instalado câmeras em todo o estabelecimento, inclusive em corredores, salas de aula, laboratórios, espaços de convivência e lanchonetes.

Diante da notícia, instauramos, de ofício, procedimento de investigação, designando audiência para manifestação das empresas envolvidas, inclusive com o propósito de assinatura de termo de ajuste de conduta, conforme prevê o § 6º do art. 5º da Lei nº 7.347/85.

Um dos estabelecimentos investigados se recusou à assinatura do termo de ajuste de conduta por entender legítima a conduta empresarial, sob o fundamento da necessidade de proteção do seu patrimônio, chegando a afirmar que, diante das ocorrências de furto no interior da empresa, viu-se premido a adotar uma das iniciativas: “submeter o seu corpo de alunos ao constrangimento de eventuais procedimentos policiais ou vistorias por seus prepostos, a mais das vezes despreparados para fazê-lo ou, alternativamente, correr o risco de sofrer prejuízo decorrente do furto ou da apropriação indébita dos seus equipamentos (...)”, afirmação que impôs a iniciativa do Ministério Público do Trabalho quanto à propositura da ação civil pública perante uma das Varas do Trabalho de Salvador/BA, pois nos convencemos da existência de procedimento francamente invasivo à intimidade dos trabalhadores.

Como se vê, não se descartou sequer a possibilidade de desenvolver procedimento vexatório e identificado às revistas pessoais, que vêm sendo combatidas pelos que perseguem um direito do trabalho a serviço da dignidade.

Gravíssimo, no entanto, sob nosso entender, foi o reconhecimento de que a causa a justificar o monitoramento eletrônico na empresa fora a ocorrência de furto no estabelecimento, quando acalentava-se a esperança de que a segurança do quadro de empregados e do próprio corpo discente que financia a atividade empresarial pudessem ser considerados para a decisão de utilizar-se câmeras no meio ambiente do trabalho, que, ainda assim, tratar-se-ia de procedimento indevidamente invasivo e ofensor ao princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana.

3. Dignidade da pessoa humana e câmeras de televisão na empresa

O legislador constituinte originário concebeu a unidade política nacional como Estado Democrático de Direito (art 1º, caput, da Constituição) e, por corolário, residência permanente do princípio da igualdade. Outro não é o propósito da ação que concretizar o querer constituinte em termos de consecução da dignidade da pessoa humana, referida como princípio fundamental no corpo do art. 1º.

A consciência jurídica brasileira não consolidou, até hoje, aquilo que os teóricos convencionaram denominar de “cultura constitucional”, materializada em comportamentos e condutas tendentes a i) preservar a “vontade de constituição”; ii) efetivar, no plano máximo possível, os princípios e normas constitucionais; iii) disseminar o conhecimento a respeito do texto constitucional.

E a inexistência de uma cultura constitucional reverbera nos mais diversos domínios da vida brasileira, quer no campo econômico, político, social, e – por paradoxal que possa parecer – no altiplano do pensamento jurídico.

E o mais intrigante ainda é constatar que preceitos havidos como “princípios fundamentais constitucionais” são utilizados como meros instrumentos de retórica, indicados, aqui e ali, com grandiloqüência em seminários e congressos de direito constitucional, sem que os advogados, membros do Ministério Público e juízes se dêem conta da...

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